Pancs: alimentos nada convencionais

Publiciado em 06/05/2017 as 16:49

Você imagina o verde que cresce aos montes no seu quintal ou espremido no asfalto de uma grande cidade se tornar ingrediente importante num prato? Se sua resposta foi com uma grande negativa, saiba que elas podem ser de um grupo cada vez mais forte na cozinha contemporânea chamado de Plantas Alimentícias Não Convencionais, ou simplesmente pela sigla Pancs.

Em outras palavras, é o mesmo movimento em torno do que um dia já foi estranho dentro da alimentação humana, a exemplo de pedidas tão banais aos dias de hoje, como rúcula, couve e até alface. A diferença, para quem defende a utilização desses “novos” insumos, é o preconceito por conta de restrições já bem estabelecidas no senso comum.

Ao cozinheiro tradicional chama atenção o fato de não serem espécies vendidas normalmente em uma feira. Na verdade, passam pela característica de silvestre, típica em grandes matas, ou espontânea, por também crescer em lugares banais. A semelhança entre elas está no consumo raro, originando o termo Panc, que só veio a ganhar os holofotes com a pesquisa do botânico fluminense Valdely Kinupp e do agrônomo Harri Lorenzi transformada em livro, há três anos. Juntos eles detalharam 352 tipos comestíveis, entre sementes, raízes, folhas e até frutos como o umbu, tão presente na Caatinga, mas considerado Panc no Sudeste brasileiro por conta da dificuldade de se encontrar o ingrediente por lá.

E como a baixa demanda gera pouco interesse do comércio e, por consequência dos produtores, acontece o que estima a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) sobre a queda no consumo de 10 mil para apenas 170 tipos nos últimos cem anos. De acordo com o paisagista Nelson Noveli, isso representa apenas 20% do que pode ser mais bem aproveitado dentro de casa. “Sob o olhar comum, elas são consideradas ervas daninhas, até por conta da apresentação nada convidativa. No entanto, guardam valores nutricionais importantes e desconhecidos do grande público”, explica. Mas isso não quer dizer que todo o verde pode ser usado como comida. “Precisamos ter um olhar seletivo e bem informado sobre o assunto, pois são espécies resistentes e que podem nascer em qualquer lugar”, reforça.

Segundo a professora de gastronomia, Lourdes Barbosa, denominar o que já vem sendo utilizado desmistifica preconceitos na cozinha. “São movimentos cíclicos que chamam atenção sobre algo e falam para as novas gerações como é possível trabalhar com tantas ofertas de insumo. É como citar a gourmetização e lembrar o quanto já se produziu em torno desse tema. Agora é hora de resgatar o ingrediente de base e buscar a essência no prato”, defende. Não é à toa que chefs tarimbados fazem disso uma prática em várias de suas receitas. Que o diga Paola Carossela, Alex Atala e Helena Rizzo, do Maní (SP), onde um mil folhas é servido de sobremesa com creme de caule de lírio e sorbet de flores de lírio-do-brejo.

Quintal pernambucano
Por aqui, Claudemir Barros, do res­taurante Wiella, e Rivando Fran­ça, do Cozinhando Escondidi­nho, também são defensores do uso das plantas não convencionais em cardápio fixo ou menu confian­ça. A dupla integra um time jovem de cozinheiros que se uniu para discutir gastronomia com temas desse tipo em roda de conversa e até em jantares temáticos. O primeiro deles aconteceu em fevereiro, com pratos à base de Pancs.

No menu, a palma forrageira entrou como elemento versátil. Algo que mexicanos, europeus e até japoneses já reconhecem como oferta nobre preparada como caldo, salada e doces. Bem diferente do contexto de subsistência do Sertão nordestino onde há a ideia de rejeição para um vegetal tão abundante e de baixo custo, também rico em vitamina A e em minerais como ferro, cálcio e potássio. Na mão dos chefs Vinícius Arruda e Danillo Coelho é matéria-prima de prato principal, como na carne de sol que sustenta um crocante de palma de gostinho azedo. Faz o contraponto ideal ao molho feito com manteiga de garrafa e até com a farofa bolão com pedaços do cacto como se fossem picles.

Para os chefs Giovana Nacarato e Thiago das Chagas, do Reteteu Comida Honesta, a sobremesa pode ter o sabor mentolado do sorvete de poejo, uma Panc muito utilizada na culinária portuguesa e, por aqui, fácil de encontrar no mercado de São José como erva típica de rituais religiosos. “Esses são os usos mais populares, quando não aproveitados em tratamentos fitoterápicos”, lembra Giovana. O gelado ainda é servido com pétalas da popular pata de vaca, que pertence à família das leguminosas e é amplamente aplicada na medicina caseira. Assim é o prato ainda composto por bolinho de castanha de caju sobre caldo de acerola com pitanga e hibisco - também considerado Panc.

No debate em grupo, os cozinheiros trocam informações sobre tipos comestíveis com a ajuda de especialistas no assunto. “Soubemos, por exemplo, que a avenida Agamenon Magalhães está cheia de possibilidades, como a perfumada jasmim-manga”, conta Thiago, que sempre conversa com a pesquisadora em jardinagem e botânica, Tida de Paula. Mais curioso ainda é que muita gente tem acesso a algumas opções, mas fazem o descarte durante o manuseio. É o caso da folha da batata doce e seu toque levemente amargo, sendo uma fonte antioxidante e rica em vitaminas. O mesmo vale para as ramas da cenoura, tão nutritivas quanto a própria raiz, e possíveis de complementar o prato.

Outras Pancs:

Trevo
Comum na paisagem, porém despercebida na culinária. Essa é uma planta que seus talos e folhas podem ser consumidos, inclusive num bom prato de salada.

Bredo
Esse já vem ganhando seu espaço na cozinha nordestina, inclusive para uma receita tão típica baiana como o Caruru. Tem ferro, potássio, cálcio e vitaminas.

Capuchinha
Não são apenas as famosas florezinhas que podem ir para a panela. Suas folhas também são alimentos de toque amargo e picante.

Lírio-do-brejo
Suas flores brancas e perfumadas podem ser utilizadas em várias receitas, inclusive cruas. Já as folhas são muito utilizadas para enrolar carnes e peixes que vão à brasa.